Muito mais festejado do que estudado ou entendido; o santo carmelita traz contribuições tão valiosas ao caminho de santificação cristã que mereceu, por parte da Igreja, o título de Doutor Místico.
Costumam-se decifrar grandes figuras do passado pela leitura atenta de sua biografia e de suas obras. Isso parece que funciona de modo geral, mas não se aplica de modo algum à Cristo e aos seus santos. O conhecimento de Jesus sempre será imperfeito e inexato se, para aquele que O procura, Ele permanecer como uma figura histórica e afastada no tempo. Faz-se necessário um encontro pessoal com Aquele que é, foi e será Santo por toda eternidade. Para começar a conhece-Lo e ir se aprofundando neste conhecimento durante toda a nossa vida.
Com um Santo, não poderia ser diferente. Eles nos atraem e se deixam conhecer com um único e grande objetivo: ajudar-nos a aproximarmo-nos cada vez mais de Deus. Tornam-se, portanto, mais do que imperfeitos objetos de estudo, passam a ser amigos e verdadeiros irmãos que nos orientam e nos encaminham para o pai.
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São João da Cruz não é para iniciantes
Confesso que, do dia em que comprei o volume único de suas Obras Completas até começar a entender seus escritos, passaram-se mais de 15 anos. No caminho da santidade ou, para subir o Monte Carmelo usando uma metáfora joanina, é impossível começar pela mística. E São João da Cruz é o doutor místico. Suas poesias se revelam lindas como o Cântico dos Cânticos, e tão enigmáticas quanto o livro bíblico. Sua prosa, parece se contorcer em um único tema, a noite espiritual da alma, tão incompreendida quanto a poesia.
É preciso lembrar que, seus escritos tem um claro objetivo: ajudar aqueles que se encontram no final da vida ascética a progredir rumo a união plena com Deus, ou mística. Foram dedicados prioritariamente para os seus irmãos carmelitas, não para o público em geral, e sempre que ele fala de “iniciantes” não se trata, de forma alguma, de recém convertidos, e sim, para aqueles que apresentam os primeiros traços de quem se inicia na contemplação infusa de Deus.
”Final da vida ascética, mística, contemplação infusa”; se tudo isso soou um pouco estranho é porque para se chegar a São João da Cruz, precisamos passar pela mestra em oração e doutora em espiritualidade Santa Teresa de Jesus. Somente entendendo o caminho espiritual do Castelo Interior de Santa Teresa se conseguimos situar São João da Cruz com exatidão, pois, seus escritos se dirigiam para aqueles que já viviam sob as orientações espirituais do carmelo reformado teresiano.
Sendo assim, é necessário explicar que foi Santa Teresa quem delineou com clareza o caminho de perfeição da alma até a união completa com Deus e, para resumir ao extremo, podemos dizer que este trajeto é composto por um percurso de 7 moradas sucessivas, onde as 3 primeiras são conhecidas como via ascética e as 4 últimas são a via mística. Essas vias compõem um único caminho, este caminho é progressivo e, portanto, não se chega às moradas mais interiores sem passar pelas mais exteriores ou, em outras palavras, ninguém vai direto para a mística sem passar pela ascética. Assim, os “iniciantes” dos escritos de São João da Cruz são experientes na vida espiritual e de oração, já percorreram 3 moradas interiores e só são chamados assim, porque, agora se iniciam na segunda parte, a via mística.
A contribuição de São João da Cruz
Neste caminho de santificação, São João da Cruz nota que “faz pena ver (…) (as) almas trabalharem e se fatigarem, inutilmente, com grande esforço, e em vez de progredir, retrocederem, porque pensam achar proveito naquilo que (na realidade) lhes é estorvo.”
Deste modo, seus tratados espirituais se concentram em esclarecer aos diretores espirituais em primeiro lugar, e aos que percorrem o caminho em segundo lugar, a entender onde estão, como estão e quais os passos que devem ser dados. Mas também, os passos a serem evitados para realmente se progredir na via de santificação da alma com constância. Pois, como lembra o santo, “ninguém ignora que, no caminho da perfeição, não ir adiante é recuar; e não ir ganhando é ir perdendo.”
Neste caminho de união total com Deus, é imprescindível o despojamento de si mesmo até a completa desnudez espiritual da alma. Aquele que deseja a santidade, ensina São João, não pode ser plenamente de Deus enquanto ainda possuir qualquer coisa de seu. Ou, como bem sintetiza: “para chegares a possuir tudo, não queiras possuir coisa alguma.”
ARIDEZ ESPIRITUAL NÃO É NOITE ESCURA DA ALMA
Por último, mas não menos importante, uma correção: é comum na vida ascética, ou seja, nas 3 moradas iniciais do caminho espiritual, vivermos momentos de desânimo, perda de energias e grandes dificuldades para se manter a vida de Fé, a frequência e fervor na oração. A isso tudo dá-se o nome de aridez espiritual e é um fenômeno tão complexo e multifatorial que fugiríamos do tema o desenvolvendo aqui.
Mas, o que precisa ficar claro é que nada disso tem haver com a noite escura da alma como foi delineada por São João da Cruz. Essa é uma etapa da vida espiritual vivida muito adiante, já no meio da vida mística, na quinta morada. Ou seja, aridez espiritual acontece nos inícios da vida espiritual, noite escura da alma é um fenômeno que, se ocorrer, ocorre somente com os adiantados ou proficientes da via unitiva ou mística como se referia São João.
A noite escura é uma purificação da fé daquele que já a possuiu em grau muito alto. Isto é, durante todo o caminho espiritual, como forma de orientar o caminho e incentivar a aplicação da alma, Deus promove uma série de consolações e benefícios espirituais fortalecendo as virtudes infusas e as virtudes teologias da fé, da esperança e da caridade. Tudo isso é sentido e cada vez mais perceptível. Mas, como explica São João da Cruz, “no alto estado de união (…), Deus não mais se comunica à alma mediante (…) visão imaginária, ou semelhança, ou figuras. Fala-lhe de boca a boca, isto é, a sua essência pura e simples, que na efusão do seu amor é como a própria boca de Deus, une-se à essência pura e simples da alma.”
Esse contato, por se dar de forma tão pura e direta, passa-se de tal forma desapercebido pelos sentidos ou potências de quem o recebe que dá a impressão de que, Deus não se comunica mais com a alma, afastando-a de sua luz e mergulhando-a em completa escuridão. Embora, esse contato seja extraordinariamente mais efetivo que todas as comunicações anteriores, quem o recebe não o percebe, como se estivesse numa noite muito escura e, somente pela fé, pode acreditar que Deus continua próximo, atuando e elevando a alma até Si. Trata-se da última purificação da fé antes do desposório espiritual da sexta morada.
Essa noite escura e a grande alegria de quem a vive pois sabe que Deus está completando a obra de santificação de sua alma, é muito bem delineada nos versos iniciais de uma das poesias de São João compostas quando se encontrava na prisão em Toledo. Ela se intitula Cantar da Alma que Se Alegra em Conhecer a Deus pela Fé:
Aquela eterna fonte está escondida,mas bem sei onde tem sua guarida,mesmo de noite.
A espiritualidade de São João da Cruz - em profundidade :
Para os carmelitas, São João da Cruz é especialmente importante, já que ele é o principal homem carmelita levantado pela Igreja como um exemplo de alma no estado de união com Deus. Embora existam muitas monjas de clausura que foram canonizadas por sua elevada espiritualidade, São João da Cruz é o único homem canonizado com grandes escritos espirituais. É por isso que ele é especialmente querido para nós como monges carmelitas.
Nos olhos de São João da Cruz, o Carmelo era tudo sobre a união da alma com Deus. Ele disse na Ascensão do Monte Carmelo : "Meu princípio não é abordar todos, mas certas pessoas de nossa ordem sagrada do Monte Carmelo (...) a quem Deus está concedendo o favor de colocá-las no caminho para este monte". Ele se dirigiu especificamente aos carmelitas em seus escritos porque alcançar a união com Deus era o foco principal do carmelita.
Mapa para Subida ao Monte |
O que é essa união com Deus que é tão fundamental para a espiritualidade de São João da Cruz? É um completo morrer para o velho eu caído e viver novamente em perfeita docilidade a Deus e Seus movimentos na alma. São João disse em The Living Flame of Love"Sejamos sabendo que o que a alma chama de morte é tudo o que vai para compensar o velho eu ... Nessa nova vida que a alma vive quando chegou à união perfeita com Deus aqui sendo discutida, todas as inclinações e a atividade da [alma] (...) torna-se divina. Como (...) as operações da alma estão em Deus por meio de sua união com ele, ela vive a vida de Deus ”. A alma em união é perfeitamente dócil à graça, e assim a alma é movida somente por Deus e não por seus próprios desejos ou pensamentos. Ele explica: "Pois a alma, como uma verdadeira filha de Deus, é movida em todas as coisas pelo Espírito de Deus". A vontade da alma está perdida na vontade de Deus e os dois tornam-se um pela graça.
São João da Cruz explica que a alma em união com Deus tem um efeito maior sobre a missão da Igreja simplesmente pelo seu amor, do que antes pelas suas obras. Ele diz em A Noite Escura da Alma : "No estado de união, no entanto, eles trabalharão grandes coisas no espírito, mesmo como homens adultos, e suas obras e faculdades serão então Divinas, e não humanas". Ele diz em The Spiritual Canticle , "Um instante de amor puro é mais precioso aos olhos de Deus e da alma, e mais proveitoso para a Igreja, do que todas as outras boas obras juntas." Um ato de puro amor de uma alma em união com Deus faz mais pela missão da Igreja do que todas as outras obras porque dá graça a essas obras e as sustenta.
O caminho para as alturas da vida mística de São João da Cruz é um caminho difícil, cheio de abnegação e purgação. Na subida do Monte Carmeloele fala assim: "Essa perfeição consiste em anular, despir e purificar a alma de todo desejo". A alma deve ser purgada de todo desejo que se apega a partir de um amor desordenado para que possa alcançar esse puro amor de Deus. O próprio Deus é o agente primário neste purgação que Ele faz através da oração infusa, chamada contemplação. "É claro que esta contemplação sombria é, nos inícios, dolorosa para a alma ... em razão da purificação das imperfeições da alma que acontece através desta contemplação". Esta purgação é chamada a Noite Negra da Alma, onde primeiro os sentidos da pessoa são purificados e depois o espírito através de uma escuridão espiritual árida e difícil. Estas duas provações, a noite escura dos sentidos e a noite escura do espírito,
Este é o caminho para a santidade que é muito difícil e, portanto, é digno de louvor. Mas essas provações são temperadas por Deus que é muito misericordioso. São João da Cruz diz: "Embora estas águas sejam escuras, elas não são menos que águas e, portanto, não podem deixar de refrescar e fortificar a alma." Então, Deus secretamente alimenta a alma, dando-lhe força para suportar qualquer provação que Ele lhe dê. Esta não é uma experiência da ira ou justiça de Deus, mas sim uma experiência da própria fraqueza da alma. Na noite escura da almaele explica: "Uma coisa de grande admiração e piedade é que a fraqueza e impureza da alma agora devam ser tão grandes que, embora a mão de Deus seja em si mesma tão leve e gentil, a alma deve agora sentir que é tão pesada. (…) mas apenas toca, e que misericordiosamente, desde que ele faz isso para conceder a alma favores e não para castigá-la ”. Na misericórdia paterna de Deus, ele purifica a alma de todos os pecados e imperfeições, de modo que é perfeitamente dócil às inspirações de Deus e dignas de entrar diretamente no céu.
O fruto dessa purgação é a visão imediata de Deus na morte. Ele diz em A Noite Escura da Alma : "Essas almas, que são poucas, não entram no Purgatório, uma vez que já foram totalmente expurgadas pelo amor". Essas almas abençoadas são: "O perfeito, que agora queima docemente em Deus. Pois esse doce e delicioso ardor é causado neles pelo Espírito Santo em razão da união que eles têm com Deus". Por esta razão, São João da Cruz chama essa noite escura da alma de uma "feliz chance" pela qual todas as bênçãos chegam à alma.
A espiritualidade carmelita de São João da Cruz, portanto, é sobre essa grande jornada para a união divina no íngreme Monte do Carmelo. É o verdadeiro amor por Deus que leva a alma a perseverar e alcançar essa união com Deus. "Na noite feliz, em segredo, quando ninguém me viu, nem eu vi qualquer coisa, sem luz ou guia, salvo o que queimou em meu coração ... Oh noite que me guiou, Oh noite mais linda que a aurora, Oh noite que se uniu a Amada com amante, amante transformado no Amado! "
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