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quinta-feira, 30 de maio de 2019

ORAÇÃO | ASCESE CRISTÃ | PARTE III

4. A vigilância e a ternura

O esquecimento é o "gigante do pecado", dizem freqüentemente, os Padres népticos. Esquecimento: endurecimento de coração, como acabamos de ver, dureza de coração. O homem muitas vezes, vive como um autômato, na temporalidade sem presente, donde o porvir não cessa de fazer sombra sobre o passado. O homem não sabe que Deus existe, que vem para ele e o ama. Não sabe que, no perdão e na luz de Deus, tudo existe para sempre.

A lembrança da morte desloca esta zona aparentemente clara, bem balizada, que o homem recorta da superfície da existência. A troca da lembrança da morte pela lembrança de Deus desencadeia o despertar, como o de Jacó visitado pelo sonho (e para nós, Cristo é nossa escala, para sempre). "Certamente o Senhor está nesse lugar e eu não sabia. Tive medo e disse: "Que temível é este lugar! Aqui é a casa de Deus, aqui é a porta dos céus" (Gen 28,16-17).

O despertar é escatológico: Cristo é a escala, é o último instante, o juízo e o "Juízo do juízo", a transfiguração universal. O despertar é a vigília das virgens prudentes. Não é que elas sejam mais virtuosas que as outras, nota São Serafim de Sarov, pois as outras também souberam conservar sua integridade. Porém, sua lamparina está provida de azeite, e o azeite é a graça estremecedora do Espírito respondendo à fé e à humildade.

Niicolás Cabasillas, que escreveu para os leigos dedicados às ocupações do século, pede-lhes somente que recordem, em todo o tempo, que Deus nos ama com um amor exagerado - "manikis éros" - "Quer vás, quer venhas, quer trabalhes, quer fales, que este pensamento esteja a vos despertar muitas vezes: Deus vos ama. Ele vos ama de tal modo que por vós saiu de sua impassibilidade até morrer de amor por vós. Ele quis, por vós, chegar a ser Aquele que dá sua vida pelos seus amigos, Ele o inacessível. Ele desce, busca o servo a quem ama; Ele, o rico, inclina-se até a nossa pobreza. Apresenta-se a si mesmo, declara seu amor e roga que lhe seja retribuído... Rechaçado, não se ofende; espera pacientemente como um verdadeiro amante. Mendigo de amor, ladrão de amor que vem na noite, que vem em minha noite. O "Fiat" da Virgem, permitiu-lhe retomar, pelo interior, sua Criação; espera-nos no abismo do coração, bate à porta de nossa consciência a partir desse coração, a partir do mais profundo de nós mesmos, pois se converteu em nosso "alter ego", disse Cabasillas. Ele não nos pede, em primeiro lugar, que O amemos, mas que compreendamos o quanto Ele nos ama. Então, nos despertaremos. "Nepsis": é o despertar, a vigília, a vigilância.

No sentido mais amplo, pois nossa existência toda inteira é entorpecente, porém também, no sentido mais preciso, que nos recorda o simbolismo litúrgico do dia e da noite, da luz e das trevas, da luz que brilha, doravante, nas trevas. O "neptico" pratica a "guarda do coração": mantém aberto o caminho entre a consciência e o santuário interior, o sol secreto que as nuvens das "paixões" intentam cobrir sem cessar. Atravessa o "oceano fétido que nos separa de nosso paraíso interior".

A consciência, armada com o Nome de Jesus, deve perscrutar atentamente os "logismoi" - a palavra vem do Evangelho - quer dizer, os pensamentos como impulsos germinativos que enternecem o coração. Ou o pensamento é bom, criador - e é necessário fortalecê-lo, revestindo-o com a bênção do Nome - ou o pensamento é o gérmen de uma obsessão, de uma paixão - e então, será necessário jogá-lo contra o penhasco, como aos filhos da Babilônia; e o penhasco é o Nome.

Tendo o cuidado de desacomodar a força vital que ela mobilizava, para pacificá-la e transformá-la, durante a luta contra a obsessão nascente, a invocação deve acelerar-se, até que chegue a paz.

A noite é particularmente propícia para este exercício de discernimento e de metamorfosis, aspecto fundamental da "nepsis": porque ela é silêncio e recolhimento; mas, também, porque ela é trevas. O monge entra na noite como entra no deserto, para enfrentar as potências "deífugas", para fazer brilhar no infra-consciente, não só individual, senão pan-humano e cósmico, a luz do supra-consciente. O que importa é penetrar este bloco de noite e de deserto que trazemos em nós. O sono deve ser moderado, às vezes, transpassado pelo ofício da meia-noite, suprimido frequentemente por uma longa vigília. É necessário tentar dormir invocando o Nome divino-humano para que a oração penetre no sono mesmo. "Orar numa só palavra. Tu deves estar presente, do deitar ao despertar".

Para os leigos, como para aqueles que são débeis, Cabasillas recomenda confiar a guarda do coração ao Sangue Eucarístico. Enquanto que, um grande monge poderia (como fez Santa Maria do Egito) comungar não mais que uma só vez depois de toda uma vida de preparação, recebendo então em plena consciência a comunhão como uma fonte deificante, os débeis, diz Cabasillas, devem comungar freqüentemente. É, então, o Sangue Eucarístico que guarda o seu coração; e Cabasillas não recomenda nada mais que breves meditações nas quais tomamos consciência do "amor extremado" de Deus por nós.

Aqui, nesta recordação da morte, que chega a ser recordação de Deus, instala-se o mistério das lágrimas, o carisma das lágrimas. A civilização ocidental converteu-se numa civilização que não chora. É por isto que nos dedicamos, tanto na arte como nas ruas, a gritar cegamente. Como se os jovens quisessem libertar neles o gemido do Espírito e não soubessem como fazê-lo. Pois bem, "quando o homem recebe o dom das lágrimas, é o Espírito quem chora docemente nele", diz Simeão Metafraste, comentando S. Macário, o Grande. As lágrimas espirituais são a água batismal na qual se dissolve a dureza do coração. Quando chora, o espiritual volta a ser como as águas originais oferecidas ao sopro do Espírito.

As lágrimas são, em primeiro lugar, lágrimas de penitência; nascem "de uma muita profunda humildade". São as lágrimas da recordação da morte, do pecado, compreendido em toda sua profundidade, em suas ramificações e seus encadeamentos insuspeitos. Porém, pouco a pouco, pela recordação de Deus, as lágrimas de arrependimento se transformam em lágrimas de gratidão, de admiração e de alegria. "A fonte das lágrimas, depois do Batismo, é algo maior que o Batismo", dizia São João Clímaco. Aquele que se revestiu de lágrimas como o de um traje de bodas, este conheceu o bem aventurado sorriso da alma, pois sorrir através das lágrimas é símbolo de ressurreição. E as lágrimas carismáticas que correm docemente, sem contração do rosto, tem já algo de uma materialidade transfigurada.

O canto das lágrimas é uma das chaves da arte litúrgica ortodoxa; já sensível no monaquismo bizantino, manifesta-se muito particularmente na ortodoxia de língua árabe, cujo canto, um pouco nasal, é a voz das lágrimas.

Igualmente, esta "dolorosa alegria", esta "bem-aventurada aflição", é provavelmente uma das chaves da iconografia ortodoxa - cuja obra mestra é, talvez, a "Virgem da Ternura".

Ternura, "katanyxis, oumilenié", outra palavra decisiva no vocabulário 'hesicasta'. As lágrimas são "lágrimas de doçura". O contrário da "sklero-cardia" é a "ternura divina do coração". Toda a força de paixão do asceta, crucificada pela "recordação da morte", purificada e iluminada pelas lágrimas carismáticas, converte-se numa imensa ternura paterno-maternal, numa capacidade de receber sem julgar, percebendo sempre mais além do pecado, o mistério irredutível da pessoa. Carisma da "simpatia", que envolve o outro com uma alegria de ressurreição e lhe faz compreender que é amado. Carisma de feminilidade espiritual, segundo a imagem da Mãe, "capacidade de sentir a presença de Deus até mesmo nas almas devastadas", como dizia Paul Evdokimov.

5. Uma unificação excêntrica

Não é justo separar as duas etapas seguintes - das que a metânica constitui a base indispensável - a da unificação da consciência e do coração e a da transfiguração na luz divina. A unificação, com efeito, não é extática por si mesma. É porque o homem sai de si mesmo, de sua natureza, para unir-se a Deus, que ele pode pacificar e reunificar esta natureza. O Aprofundamento na existência, o despertar progressivo do "coração consciente" de onde se transfiguram (...) a inteligência e a força vital do homem, a experiência simultânea da consubstancialidade de todos os homens, "membros uns dos outros" em Cristo, tudo contribui, no dinamismo que vai da fé ao amor por meio da esperança, para realizar pouco a pouco a unificação excêntrica.

Ex-cêntrica, porque o homem se recolhe em seu coração, que em si mesmo não é mais que o lugar de transparência a uma luz incriada, isto é, cuja fonte está sempre mais além.

Ex-cêntrica, pois o homem assume a natureza humana reunificada em Cristo na medida em que, por auto-transcendência pessoal, adere com toda sua fé à pessoa de Cristo. Esta transcendência do homem no desconhecimento responde misteriosamente à trans-consciência de Deus vivo, na "kenosis". As energias divinas unificadoras são o conteúdo de um re-encontro.

A "Oração de Jesus" pode se revestir de formas "técnicas", psicossomáticas, para favorecer esta unificação do espírito e do coração. Indicações bastante precisas se encontram nos textos dos séculos XIII e XIV, quando se produziu, no mundo bizantino, um forte renascimento do hesycasmo. O recurso à palavra escrita prova que os mestres haviam desaparecido e também que o hesycasmo não é um esoterismo com suas linhas ininterruptas de mestres a discípulos, como no sufismo, senão a realização consciente do mistério cristão, sempre susceptível de renascer da vida sacramental e da penetração espiritual das escrituras. Nil Sorsky, no século XVI, o starets Silvano no século XX, re-enviam o aprendiz, se não encontra o mestre, à meditação da Bíblia e dos Padres a uma profunda vida sacramental, ao respeito aos "mandamentos de Cristo", em fim, aos conselhos de todo confessor de boa vontade, ainda que não entenda nada do "método": se se remete a ele na confiança e na humildade, Deus mesmo nos guiará por sua intermediação.

Ao final do século XIII e durante o XIV, num período muito turbulento, muitas coisas foram confiadas à palavra escrita: trata-se dos textos de Nicéforo, o Solitário, (que constituem uma pequena Filocalia dentro da grande), do autor anônimo do "Método" de São Gregório Palamás, de São Gregório, o Sinaíta, de Calisto e Ignácio Xanthopoulos. O conjunto de extratos concernentes às técnicas da oração foi estabelecido por João Gouillard, que o completou utilizando certas indicações de São Nicodemos, o Hagiorita.

À saída e, sobretudo, à luz do sol, dizem esses textos, é necessário, para orar, fechar-se "em uma cela tranqüila e escura, em um lugar afastado, um rincão". Enquanto que, para os principiantes, a oração de Jesus se faz de pé, com ou sem prostrações, recomenda-se sentar-se em assento baixo ou inclinar-se apertando o peito ,seja simplesmente apoiando o maxilar sobre ele ou curvando-se extremamente, num movimento "circular" do corpo, inclinando a cabeça até os joelhos, não sem uma "dor no peito, das costas e da nuca." Se se contenta com inclinar-se apoiando o maxilar ou queixo sobre o peito, é o olhar o que fechará o círculo, fixando-se sobre o mesmo peito ou "sobre o centro do ventre, isto é, sobre o umbigo.

Tais posturas têm um sentido no que se expressa a realidade simbólica, sacramental do corpo. Manifestam e, por conseguinte ,favorecem a concentração de todo o composto humano sobre o coração, num movimento que, porque é incômodo (ao contrário da facilidade soberana buscada pelo Yoga), não é de domínio mas de oferenda. "Assim", - diz Nicodemo, o Hagiorita, - "o homem oferece a Deus toda a natureza sensível e intelectual, da que é o vínculo e a síntese.

Os hesycastas se referem, a este respeito, ao "movimento circular da alma", do qual fala Dionisio, o Aeropagita nos Nomes Divinos: "O movimento circular da alma, é sua entrada nela mesma pelo desligamento dos objetos exteriores e o "envolvimento" unificador e suas potências. Igualmente, a fixação do olhar sobre o umbigo, isto é, sobre o centro vital do homem (todo um estudo se imporia aqui para saber se se pode adiantar uma comparação com o Hara japonês), não é uma simples comodidade de concentração, mas significa que toda a força vital do homem, "metamorfoseando-se no coração consciente", deve também chegar a ser oferenda. "Deus pode assim fazer sua", diz São Gregório Palamás, "a parte concupiscível da alma. Ele pode devolver o desejo a sua origem", isto é, o Eros por Deus, do que falam tão profundamente São João Clímaco e o Apocalipse, que lança seu chamado ao "Homem de desejo".

Deste modo, também o corpo se "une" a Deus "pela força mesma desse desejo". Aqueles que se ligam aos prazeres sensíveis da corrupção esgotam na carne toda a potência de desejo de sua alma e chegam a ser integralmente carne. O Espírito não poderia habitar neles. Pelo contrário, naqueles que elevam seu espírito até Deus e estabelecem sua alma no amor de Deus, sua carne transformada compartilha o impulso do espírito e se une a Ele na comunhão divina. Chega a ser, ela também, o domínio e a habitação de Deus. Esta transfiguração do Eros no Ágape é uma constante nesta tradição: "Que o Eros físico seja para ti um modelo em teu desejo de Deus", escrevia São João Clímaco. E dizia inclusive: "Felizes aqueles que não têm uma paixão menos violenta por Deus que a do amante por sua bem-amada."

Em tal postura, é necessário "recolher o espírito e "fazê-lo descer", "impulsioná-lo" para o coração, utilizando o movimento da inspiração. A curvatura do corpo permite "comprimir" a respiração. Se "retém o sopro", o maior tempo possível, pronunciando as palavras da oração. Logo, se expulsa o ar, "com os lábios fechados". Isto de pé. O espírito, atraído pela posição incômoda do corpo " se recolhe assim mais facilmente". O coração desconfortável pela retenção respiratória, é mais fácil de "encontrar". Na continuação "o vai-vém do sopro se faz mais e mais lento. A invocação não se pronuncia já por meio dos lábios, inclusive, quase em silêncio, se realiza de uma maneira interior. "Chega um dia em que o espírito, treinado, terá feito progressos e recebe o poder do Espírito para orar total e intensamente: então, já não terá necessidade de palavras".

Uma vez que o espírito "desceu" ao coração, não deve ter outra ocupação que o grito de "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim". A fórmula empregada será - sem que a mudança seja muito freqüente "pois as plantas muitas vezes transplantadas não prosperam" - tanto: "Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim", como "Filho de Deus, tem piedade de mim". Quando o espiritual "tenha progredido no amor por meio da experiência" e tenha obtido, por meio da graça, a evidência da misericórdia divina, abandonará o "tem piedade de mim" para concentrar-se nas palavras "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus", que dirigem o espírito imaterialmente para aquele que elas nomeiam. Os mais "avançados" e os "perfeitos" se contentarão com a invocação única do Nome de Jesus.

A oração deve ser dita "com todo seu amor" e com toda sua inteligência, aplicando-se ao sentido das palavras. Ela limpa o pó das imagens mentais, que embaça o "espelho", do coração. O coração, assim purificado, vê-se a si mesmo inteiramente luminoso "eleva-se no amor e no desejo de Deus", descobre-se pleno da "luz tabórica" que brilha no Cristo transfigurado, chega a ser aprazível "espelho de Deus" onde se imprime a "imagem" de Cristo e nela, a verdade dos seres e das coisas.

É necessário ter em conta sempre, o fato de que o ocidental de hoje difere muito do tipo de homem para quem foram escritos estes textos. O homem das antigas civilizações dispunha de um sólido ser vital. Estava arraigado no silêncio e na calma. Conhecia o cansaço profundo que, a sua maneira, purifica e renova. Estava próximo aos seres e às coisas. O homem de hoje, o da civilização urbana e industrial, vive muito mais na superfície de si mesmo. Está habitado por ruídos e imagens apressadas. Está nervosamente esgotado, porém conhece raramente a grande e boa fadiga do corpo. Está só na multidão, perdeu o contato com as coisas, com a verdadeira matéria. Farta-se com alimento e impressões. Para romper a carcaça do artificial e do mecânico, só lhe resta o erotismo. Porém este também se torna artificial e mecânico.

É por isso que se faz necessário transcrever aqui algumas linhas pertinentes de Paul Evdokimov: "Nas condições da vida moderna, sob o peso excessivo do trabalho e da busca desenfreada do lucro, a sensibilidade muda. A medicina protege a prolonga a vida, porém, ao mesmo tempo, diminui a resistência ao sofrimento e às privações. A "ascese" cristã, que não é mais que método à serviço da vida, buscará então adaptar-se às novas necessidades. A Thebaida heróica impunha jejuns extremos e auto-flagelação: o combate se desloca atualmente.

O homem não necessita de uma dor suplementar que produziria o risco quebrá-lo inutilmente.m A mortificação consistirá na libertação de toda necessidade de "doping", velocidade, ruídos excitantes, álcool de todo o tipo. A ascese será, então, o repouso imposto, a disciplina de calma e de silêncio, periódica e regular, na que o homem re-encontra a faculdade de recolher-se para a oração e contemplação, inclusive no meio de todos os ruídos do mundo. O jejum será a renúncia ao supérfluo , o compartilhar com os pobres, um equilíbrio risonho.

Neste contexto, alguns dos espirituais ortodoxos mais experimentados, desaconselham atualmente "fazer descer" a oração ao coração de uma maneira voluntarista. Corre-se o risco, assim, de falsear o equilíbrio nervoso, e de perder irremediavelmente a possibilidade de "encontrar seu coração". É necessário, por conseguinte, contentar-se em utilizar o ritmo da respiração e orar, quando for possível, "com todo o coração", no sentido popular desta expressão. Um dia, talvez, Deus, por sua graça, fará descer a oração ao coração: porém, é necessário remeter-se inteiramente a Ele, não contrair, não querer. O homem do Ocidente, disse Heidegger, " caracteriza-se pela vontade-de-vontade". É necessário aprender primeiro a abandonar-se e, esse é realmente o sentido profundo da "oração de Jesus".

Nicolás Cabasillas, que escrevia para os leigos, para os habitantes de uma grande cidade, presta-nos aqui uma enorme ajuda. Não é necessário querer guardar seu coração, senão confiá-lo ao sangue Eucarístico. É necessário partir do centro e o centro é Cristo, coração da Igreja, "alter ego" de cada fiel. O amor responde ao amor, as forças do coração iluminado pela presença do Senhor se libertam. Trata-se menos de romper com "casca" da existência para encontrar o lugar do coração, que de deixar brilhar o sol do coração, cujo resplendor modificará, pouco a pouco, desde o interior, a "casca" da existência.

Bem sabemos, atualmente, que um defeito, um vicio combatido na superfície da "psique" oculta-se, porém não se cura. Chega-se a ser moderado, porém se preferem os alimentos açucarados e se tem suscetibilidades da antiga criança. Triunfa-se sobre o vicio aparente, porém se "vampiriza" as almas sob o pretexto de guiá-las.

Cristo, no Evangelho, parte sempre do centro, dirige-se diretamente à pessoa, provoca a inversão do coração. A metanóia, no amplo sentido do termo, é isto: voltar ao coração, deixar que o Senhor o encha de luz. A ascese, daí por diante, consistirá em separar, pouco-a-pouco, os obstáculos que impedem o passo desta luz.

Quando aquele que seria, no futuro, São Doroteo ingressou no monastério, quis praticar imediatamente as virtudes mais abruptas e a oração perpétua. Seu padre espiritual, o Ancião Barsanufio, lhe pediu pelo contrário, que construísse um pequeno hospital e que se dedicasse aos enfermos. Mais tarde, Doroteo se queixava de obsessões carnais . Barsanufio, em um "contrato" famoso na história da paternidade espiritual, pedia-lhe que não se preocupasse com isto, que ele tomava tudo sobre si. Pelo contrário, Doroteo se comprometia, sobre pontos precisos, a uma atitude de confiança, de humildade, de caridade. Partia do centro, deixava brilhar o sol interior, pouco a pouco, suas tentações desapareceram por si mesmas.

A "oração de Jesus" pode nos ajudar muito nesta reconstituição de um eixo vital sob o sol do coração.

Os velhos monges dizem que não é necessário temer os momentos de "plerophoria", de plenitude experimentada no mesmo corpo. Ensinam, na perspectiva da ressurreição, um uso não passional da alegria se ser. Pedem que se "circunscreva o incorporal no corporal", até viver com gratidão uma humilde e grave sensação. Marchar, respirar, alimentar-se, tocar a casca de uma árvore, tudo pode chegar a ser celebração. "O Nome de Jesus chega a ser uma espécie de chave que abre o mundo, um instrumento de oferenda secreta, um colocar o selo divino sobre tudo o que existe. A invocação do nome de Jesus é um método de transfiguração do Universo."

Convém que um exercício de relaxamento de tomada de consciência do corpo, não termine por uma euforia imanente ou pelo sonho senão pela invocação. Quanto mais o homem se pacifica e se interioriza, mas deve orar na humildade e a confiança, em "espírito de criança", como um re-encontro em Cristo com Deus Pai, "abba, Pai", como se se orasse pela primeira vez. Esta atitude, somente, pode permitir utilizar discretamente certas técnicas asiáticas de concentração, tão na moda atualmente.

Convém que a invocação esteja presente na amizade e no amor. Enquanto a seu esplendor, necessário nas relações sociais e os ritmos de trabalho, esta poderia ser a medida, o critério de uma ação perseverante e criadora dos cristãos na sociedade.

Simultaneamente, porém pouco a pouco, intervém a terceira etapa, a da participação na luz incriada na comunhão com o Senhor Jesus, comunhão trinitária, o temos dito, pois, na interioridade do Espírito, ela nos conduz para "o seio do Pai".

Gregório, o Sinaita, diz que a oração começa a brotar no coração como as faíscas de um fogo alegre: a luz incriada se manifesta primeiro pelos toques do fogo de uma indizível doçura. Logo, diz o mesmo Gregório, no coração feito consciente, a oração "opera como uma luz de bom odor".

Não se trata de "êxtase" nem de visões. As exaltações místicas dos principiantes devem ser rapidamente sobrepassadas, pois elas poderiam ser fonte de complacência e de orgulho. O Senhor, então se retira para que o homem conheça o último despojamento, a partir do qual será "deificado", porém por pura graça.

Os grandes espirituais pedem desconfiar das visões, pois Satanás pode disfarçar-se em anjo de luz. A liturgia, a salmodia e, sobretudo os ícones, estão ali para fazer entrar o asceta, mais além de todo o fantasma, numa sóbria e muito real comunhão. Os critérios do encaminhamento justo são a paz, a doçura, a humildade e não a exaltação que deixa a alma turbada e, sobretudo, a capacidade de amar a seus inimigos, segundo a exortação evangélica.

Sem dúvida, os maiores - os mais humildes - aqueles que alcançaram o estado da oração ininterrupta que eu invocarei a seguir, tem por acréscimo, atravessado os mundos angélicos, penetrando até o trono de Deus, (o coração inflamado se identifica aqui com o carro de Elias, como no mito judeu), percebido os fundamentos do mundo criado e os confins da história, recebido a visita da Mãe de Deus e dos Santos.

O final normal, porém, desta "ascese" do coração, a transfiguração de todo o ser (compreendendo também o corpo), a transfiguração do cotidiano por uma luz que é um fogo, que não é uma emanação anônima senão o resplendor mesmo do Ressuscitado, a presença secreta do Espírito, a transformação da transcendência inacessível em paternidade amante. A visão, a audição, a inteligência, o amor, tudo se reúne numa única "sensação de Deus", tudo é luz, porém, esta luz é incriada, isto é, re-envia a uma fonte por sua vez inacessível por essência e participável por graça. Tudo é luz, porém esta luz é o conteúdo de um encontro, de uma comunhão.
O homem entra então em um ritmo inesgotável de êxtase. São Gregório de Nissa, a partir de um particípio paulino, ("tendido para") formou aqui o termo de "epectasis", onde "epi" designa o "en-stasis", a infinita proximidade de Deus, que se volta inteiramente participável, enquanto que que "ek" desina "ektasis", a tensão amante para este Deus cuja distancia não é abolida, "aquele que se busca sempre", no desconhecimento da fé, pois permanece inteiramente inacessível.

Esta distância, sem cessar, plena em Cristo, sem cessar re-aberta para o abismo do Pai, esta distancia-participação, constitui o lugar mesmo do Espírito; ela se inscreve e nos inscreve no mistério da Trindade; a alma, em vias de deificação, o coração consciente que se inflama e se eleva com as asas da pomba chegam a ser, para retomar uma expressão de Jean Danièlou, universo espiritual em expansão. E o que é verdade na relação com Deus se faz verdade na relação com o próximo e, também, admiração ante a coisa mais humilde.

A "ascese neptica" nos faz compreender definitivamente que o cristianismo não é uma ideologia que não é um saber absoluto, mas o desconhecimento amante da fé e da diaconia. Quanto mais conheço a Deus, mais se me faz maravilhosamente desconhecido. Quanto mais conheço ao próximo, mais o re-encontro com a surpresa da primeira vez. Quanto mais conheço a Criação de Deus, mas perplexo fico por seu mistério (haveria aqui, creio eu, o gérmen de uma nova lógica científica, mostrando que é a irredutibilidade do mistério o que suscita o dinamismo da investigação.)

A vida eterna começa, assim, daqui de baixo. Se vai "de começo em começo, por começos que não tem jamais fim", como diz Gregório de Nissa. Não se trata de "sair do tempo" como a mística da Índia ou de abolir o tempo como na nirvana búdico, senão de ascender a uma temporalidade propriamente eclesial, calcedônica, na que o tempo e a eternidade se uniram "sem separação e sem confusão". O ritmo desta temporalidade é aquele da morte-ressurreição, da cruz pascal. Introduz nas situações de morte de nossa existência - até a última agonia - a experiência que se concentra na do mártir. Os mártires, na história da Igreja, foram os primeiros a ser venerados como santos. Um mártir não é simplesmente, como se crê muitas vezes, alguém que dá sua vida por suas idéias. Um mártir é aquele que, no horror da tortura e da morte, abandona-se humildemente ao Crucificado-Ressuscitado, e por este meio se encontra pleno da alegria da Ressurreição. "Destroçado pelos dentes das feras", converte-se em "pão eucarístico", como dizia Ignácio o Teóforo. Igualmente o monge, na tradição antiga, é por sua vez o "stauroforo" e o "pneumatóforo", portador da Cruz e portador do Espírito, aquele que "dá o seu sangue e recebe o Espírito; e, por isto mesmo, um ressuscitado" capaz de conhecer até em seu corpo, uma plenitude inefável.

Esta temporalidade faz aflorar grandes estratos de paz e de luz na densidade dos seres e das coisas, na monotonia das tarefas cotidianas. O "enstaisis-extasis", no re-encontro do outro se faz assim serviço, amor ativo e criativo.

Esta temporalidade, finalmente, tem sabor de silêncio. Não o mal silêncio do vazio, o silêncio gelado dos abandonados, senão o silêncio pleno, o silêncio divino, essa "linguagem do mundo por vir", como dizia Isaac, o Sírio. A invocação deve então abrir-se sobre o silêncio. Primeiro, por breves momentos de silêncio intercalados entre os chamados. Logo, por uma espécie de plano interior no azul do coração consciente, segundo uma penetração da interioridade "pneumática" do Nome de Jesus. Pois o silêncio repousa no Nome como o Espírito, desde toda a eternidade, repousa no Verbo, posto que constitui a união messiânica, crítica, do Verbo encarnado. E quando o Espírito está presente não é necessário orar, somente calar n'Ele, para retomar, por exemplo, o ensinamento de São Serafim de Sarov.

Diz-se sempre que a música litúrgica, na Igreja Ortodoxa, está a serviço da Palavra. Ela, porém, está também a serviço do silêncio , abre a palavra sobre um interior de silêncio. O mesmo sucede com o canto gregoriano.

A "oração de Jesus" faz do coração de cada um uma cela monástica onde se está "só com o Único" no silêncio. A "ascese" neptica ensina a calar. O silêncio cristão, porém, é de uma palavra renovada. Num momento dado, o inseparável silencioso, o hesycasta, recebe o carisma da palavra de vida, que vai do coração ao coração, palavra-semente.

Um dos afrescos mais notáveis do Monte Athos representa um monge crucificado do qual brotam chamas. Aqueles que são como ele, são "homens apostólicos", que falam do que experimentam. E sua palavra é poderosa com todo o poder do Espírito.

Os outros, e isto é o que eu intento aqui, se contentam desfigurando-se, em apresentar seu testemunho. Tentam ser, com a palavra ou com a pena, o que é, com o pincel, um pintor de ícones. 

6. A Oração Ininterrupta

Em alguns grandes espirituais (pouco numerosos, porém não excepcionais), a "oração de Jesus" faz-se "espontânea", "ininterrupta". A invocação se identifica com as batidas do coração. É o ritmo mesmo da vida, a respiração, a pulsação do coração, o que ora neles, ou melhor, o que, na perspectiva do original e do último, se reconhece oração. Isto, repito, e sobretudo atualmente, é necessário descobri-lo em um humilde abandono, em uma inteira confiança, por meio da graça.

"Quando o Espírito estabelece sua morada em alguém, este não pode deixar de orar, pois o Espírito não cessa de orar nele. Mesmo que durma ou que vele, a oração não se separa de sua alma. Enquanto bebe, come, está deitado ou se dedica ao trabalho, o perfume da oração brota de sua alma. Dali por diante, não só em momentos determinados, mas em todo o tempo, os movimentos da inteligência purificada são vozes mudas que cantam, no segredo, uma salmodia ao Invisível" (São Isaac, o Sírio). E o Peregrino russo nos confia: "Habituei-me tanto à oração do coração que a praticava sem cessar e, finalmente, senti que ela se fazia por si mesma, sem nenhuma atividade de minha parte; ela brotava em meu espírito e em meu coração, não somente em estado de vigília mas durante o sono e não se interrompia um segundo."

De fato, os progressos para a oração ininterrupta se inscrevem claramente em nossa relação com o sono. O sono profundo é uma espécie de estado místico, porém inconsciente. É por isso que é necessário dormir, colocando-se nas mãos de Deus com confiança.

A primeira etapa consiste em evitar toda a avidez de sonho e em praticar, de uma maneira ou outra (o ofício da meia-noite dos monges) uma vigília real porém breve interrompida pelo ofício em seu alcance simbólico.

A segunda etapa consiste em fazer penetrar a invocação no sono dizendo a "oração de Jesus" no momento do adormecimento. "Oração de uma só palavra, tu deves estar presente tanto ao dormirmos como em nosso despertar". Simultaneamente, é importante tomar nota dos sonhos, não para deter-se neles, senão para comunicá-los ao padre espiritual.

Assim, pouco a pouco, se protege o sono de fantasmas diabólicos que atravessam o subconsciente. Na terceira etapa, o sono, abreviado, porém todavia durável, se faz poroso e supra-consciente. "Eu durmo, trata-se de uma necessidade da natureza. Porém meu coração vela por amor excessivo." O homem se comunica com Deus por meio das visões do sonho, que não o liberam do imaginário individual ou coletivo, mas do "imaginal", no sentido que dá a esta palavra Henri Corbin. A Bíblia está cheia de sonhos que os Setenta denominam de "êxtase". Nos antigos países ortodoxos, tais sonhos que compartilham um elemento de revelação e de profecia, são relativamente correntes. O Patriarca Anthenágoras dizia que havia tomado todas as suas grandes decisões depois de tais sonhos. Assim, antes de sua proposição de encontrar-se com Paulo VI, em Jerusalém, ele havia visto um cálice sobre uma montanha: ele e o Papa escalavam a montanha por lados opostos.

Na última etapa, a da oração ininterrupta, o espiritual não dorme quase nada: o estado místico inconsciente de sonho profundo se faz consciente nele. Não tem já necessidade de visões do "modus imaginalis": chegou a ser visionário do real. É por isto que recebe o carisma de simpatia e de discernimento dos espíritos, podendo receber visitantes e fazer-se todo para todos durante dez ou doze horas contínuas, como o faz atualmente em Londres, o Metropolita Antônio.

Ao ato de oração sucede um estado de oração. E o estado de oração é a verdadeira natureza do homem, é a verdadeira natureza dos seres e das coisas. O mundo é oração, celebração, regozijo, como o expressam admiravelmente os salmos e o livro de Jó.

Esta oração muda, porém, necessita da boca do homem pra ressoar. É o que alguns padres gregos chamam "a contemplação da natureza"; o homem recolhe os "logoi" das coisas, suas essências espirituais, não para apropriar-se delas, mas para entregá-las a Deus como uma oferenda por parte da Criação. Ele vê as coisas estruturadas pelo Verbo, animadas pelo Espírito de vida e de beleza, tender para a Origem paternal, que as acolhe em sua diferença: "Pois, a união, deixando de lado a separação, não destruiu a diferença", diz Maximo, o Confessor.

A tensão para a Parusia resume aqui o paraíso primordial. O santo vive na familiaridade com as bestas selvagens. Elas sentem emanando dele um perfume igual ao de Adão antes da queda, disse São Isaac, o Sírio. Ao redor dele, o temor e a violência não existem. Um eremita de Patmos, morto há alguns anos, dava de beber às víboras pequenos copos de leite e impedia que os meninos de seu país as matassem: "São criaturas de Deus". São Serafim de Sarov se deixava devorar pelos mosquitos, dizendo somente com o Salmo a um amigo que queria caçá-los: "Que todo o sopro louve o Senhor".

Próximo aos animais - dos que toma a sabedoria, diz São Máximo -, o espiritual está também próximo das crianças pequenas que reconhecem nele um dos seus. "Sua carne é como a nossa", disse uma pequena referindo-se a São Serafim de Sarov.

"Tudo o que me rodeava se me aparecia sob um aspecto de beleza", escreveu o Peregrino russo. "Tudo orava, tudo cantava a glória de Deus. Eu compreendia assim o que a Filocalia chama a linguagem da Criação. Via como é possível conversar com as criaturas de Deus".

O homem chega a ser então o sacerdote do mundo. "A alma se refugia como numa Igreja ou num asilo de paz, na contemplação espiritual do Universo". O homem entra ali com o Verbo, e com ele, e sob sua condução, "oferece o Universo a Deus, em sua inteligência, como sobre um altar". Esta atitude pode aplicar-se à investigação cientifica. O investigador que pratica a "oração de Jesus", "busca um princípio de explicação que não dissolve o mistério das coisas, que respeita e revela a existência e o ser em lugar de desintegrá-los". Sua tarefa não é desintegração senão a reintegração espiritual.

A Oração de Jesus provoca no coração uma caridade sem limites: "Que é o coração caritativo?" Pergunta Isaac, o Sírio. Eis aqui sua resposta: "É um coração que arde de amor pela Criação inteira, pelos homens, os pássaros, os animais, os demônios, por todas as criaturas... É por isto que um homem semelhante não cessa de orar... inclusive pelos inimigos da verdade e por aqueles que lhe fazem mal. Ora inclusive pelas serpentes, movido pela piedade infinita que se desperta no coração daqueles que se unem a Deus". E também: "Que é o conhecimento?" - O sentido da vida imortal - "Que é a vida imortal?" - Sentir tudo em Deus. Pois o amor vem do re-encontro. O conhecimento relacionado com Deus unifica todos os desejos. E para o coração que o recebe, é integralmente doçura transbordante sobre a terra. Pois não há nada semelhante à doçura do conhecimento de Deus."

Talvez o hino que mais se impõe a esta unificação diversa do mundo na luz tabórica, se encontre ao final da Filocalia grega, no Tratado Sobre a União Divina e a Vida Contemplativa, de Calixtos Catafigiota. Citemos pelo menos algumas linhas: ""Não há uma só coisa no Universo que não testemunhe o esplendor (da glória) e que não leve como um perfume desse Uno Criador. Posto que o Uno é chamado em toda coisa, que toda coisa tende para o Uno e que o Uno mais alto que o mundo se revela à inteligência através de todos os seres, é necessário que a inteligência seja conduzida, guiada e levada para o Uno mais alto que o mundo. Ela é forçada a isto pela persuasão de tantos seres... Da busca vem a visão e da visão vem a vida, para que a inteligência exulte, se ilumine e se regozije, como disse David: 'Em TI está a morada de todos aqueles que se regozijam' e 'Em tua luz, veremos a luz'. Se não... 'Como haveria ele semeado em todos os seres aquilo que está n'Ele e por meio do qual, como através de janelas, revelando-se à inteligência, Ele a chama para ele, cheio de luz?"'

Tudo culmina no amor verdadeiro do próximo. Penso neste belo texto de um russo "Louco em Cristo", do começo de nosso século: "Sem a oração, todas as virtudes são como árvores sem terra; a oração é a terra que permite crescer todas as virtudes". O discípulo de Cristo deve viver unicamente por Cristo. Quando ele ama a Cristo até este ponto, amará forçosamente também a todas as criaturas de Deus.

Os homens crêem que é necessário primeiro amar aos homens e logo a amar a Deus. Eu também acho isto, porém não serve de nada. Quando, pelo contrário, comecei a amar a Deus, nesse amor de Deus encontrei meu próximo. E nesse amor de Deus, meus inimigos também se tornaram meus amigos, criaturas divinas.

Evágrio escrevia:

"Feliz o monge que considera a todo homem como deus depois de Deus. Feliz o monge que vê como seus próprios, o progresso e a salvação de todos. Esse é o monge que, ainda afastado de todos, está unido a todos."

E Santo Isaac, o Sìrio:

"Deixa-te perseguir, porém, tu não persigas. Deixa-te ofender, porém, tu não ofendas. Deixa-te caluniar, porém, tu não calunies. Alegra-te com aqueles que se alegram, chora com aqueles que choram; esse é o sinal da pureza... Sê amigo de todos, porém, em teu espírito, permanece só". Só com o Único, que é o Amor e nos dá a força de amar. E, Santo Isaac, precisa: "Eis aqui meu irmão, um mandamento que te dou: que a misericórdia prevaleça sempre em tua balança, até o momento em que sentirás em ti a misericórdia mesma que Deus experimenta para com o mundo."
"Não intentes distinguir aquele que é digno daquele que não o é; que todos os homens sejam iguais a teus olhos, para amá-los e servi-los. Assim, poderás conduzir ao bem os indignos... O Senhor compartilhou a mesa dos publicanos e das mulheres de má vida, sem afastar dele os indignos. Assim, tu concederás os mesmos benefícios, as mesmas honras, ao infiel, ao assassino; ele também é um irmão para ti, posto que participa na única natureza humana."
"Quando reconhece o homem que seu coração alcançou a pureza? Quando considera a todos os homens como bons, sem que nenhum lhe pareça impuro ou maculado. Então, em verdade, ele é puro de coração."

A Madre Maria (Skobtzoff), uma monja ortodoxa que vivia na França entre as duas guerras, intentou precisar a 'ascese' do amor ativo. Esta antiga revolucionária, de vida violenta e apaixonada, havia se convertido em um ser de luz. Lia a Filocalia na perspectiva dos filósofos religiosos russos, em primeiro lugar Nicolás Berdiaev: dedicava-se aos excluídos, aos mais desprovidos, percorrendo a França em bondes, escrevia poemas ou pintava ícones. Durante a guerra salvou muitas vidas de judeus. Enviada à Ravensbruck, resplandecendo de maneira inesquecível entre suas companheiras, morreu tomando lugar de outra na câmara de gás. Ela gostava de recordar a história de um monge do antigo Egito que, para alimentar a um faminto, não havia duvidado de vender seu evangelho, seu único bem.

Em seu estudo sobre o Segundo Mandamento do Evangelho, esboça as grandes linhas de uma ascese de encontro e de amor. É necessário evitar - diz - projetar o próprio psiquismo sobre o demais. É necessário compreender o outro em um extremo despojamento de si, até descobrir nele a imagem de Deus. Então se descobre de que modo essa imagem pode estar apagada, deformada pelos poderes do mal. Vê-se o coração do homem como o lugar donde o bem e o mal, Deus e o diabo, travam uma luta incessante. E se deve intervir nesse combate, não pela força exterior, que não poderia chegar mais que a este "pesadelo do mal- bem", do bem imposto, denunciado por Berdiaev, senão pela oração:" pode-se intervir, se se coloca toda confiança em Deus, se se despoja de todo o desejo interessado, se, tal como David, se joga fora suas armas e entra no combate sem outra arma que não seja o Nome do Senhor. Então o Nome, chegando a ser Presença, inspira-nos as palavras, o silêncio, os gestos indispensáveis.

A todos os que alcançam este "estado de oração", tudo lhes rende o "cêntuplo". Conhecem essa transfiguração do eros que buscaram tão desesperadamente durante os últimos anos, os defensores do "freud-marxismo". Percebem com uma extraordinária "plenitude" o mistério dos seres e das coisas, a face oculta da terra. Recebem carismas de paternidade espiritual, de cura e de profecia. Esta paternidade, como aquela de Deus que ela manifesta, sobre-passa, integrando-a, a dualidade sexual: São Serafim, renovando uma antiga indicação monástica, dizia ao Superior de Sarov: "Sois uma mãe para teus monges."

O Espírito, unido ao coração, acede a uma forma renovada de intelecção, a um pensamento inseparável da paz e do amor sustentado pela oração (pois, doravante, esta não se interrompe durante o exercício do pensamento). A prática da invocação do Nome de Jesus não tem nada, como se crê habitualmente, de um anti-intelectualismo: ela crucifica e ressuscita a inteligência. "O coração liberto de imaginações termina por produzir em si mesmo santos e misteriosos pensamentos, como se vê sobre um mar calmo saltar os peixes e brincar os golfinhos."

As vezes se revelam aos "espirituais" os mistérios da origem e do fim da humanidade e do Universo, participam na passagem da História para o Reino, a iluminação da Nova Jerusalém. Tomam lugar na comunhão dos "pecadores conscientes", aqueles que oram para que todos sejam salvos.

A "oração de Jesus", pronunciada: "tem piedade de nós", nos recorda que ninguém se salva sozinho, mas somente na medida em que se chega a ser uma pessoa em comunhão, que não já está separada de nada. Aquele que invoca o Nome chega a ser o amigo do Esposo, que ora para que todos estejam unidos ao Esposo: "É necessário que ele cresça e que eu diminua". Não fala de inferno senão para si mesmo, por uma infinita humildade: é a história do cordoeiro de Alexandria, dando uma lição a Santo Antonio ao revelar-lhe que orava para que todos fossem salvos, sendo ele o único que merecia ser castigado. É Simeão, o Novo Teólogo, dizendo que é necessário olhar a todos seus companheiros como santos e ter-se a si mesmo como o único pecador, "dizendo-se que, no dia do Juízo, todos serão salvos, só eu serei rechaçado". Então o Senhor disse ao starets Silvano: "Mantém teu espírito em inferno e não desespere".

A esperança aumenta por meio da oração: esperança do Último Dia, sem ocaso, quando o sopro do Espírito dissipará as cinzas e manifestará ao mundo, como uma "sarça ardente", em Cristo. A dissolução da ilusão e da morte não se produzirão sem provas maiores. "Então, todo o que invocar o Nome do Senhor, será salvo".

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