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terça-feira, 28 de maio de 2019

ORAÇÃO | ASCÉTICA CRISTÃ

1. O contexto eclesial e teológico-sacramental

Muito importante para compreender esta oração é situá-la em seu contexto teológico e eclesial: o hesicasta não está além da Igreja, ele se centra na Igreja, se faz integralmente um homem da Igreja, capaz de “fazer eucaristia em todas as coisas” como pedia o Apóstolo (I Tes 5,18). Que o hesicasmo constitui a contrapartida cristã do yoga que re-situa, numa atitude propriamente de reencontro pessoal e de graça, uma exploração da interioridade que também as espiritualidades asiáticas praticam, é mais que provável. E isto se deve à estrutura mesma do homem, criado à imagem de Deus.

Voltaremos a falar sobre isto. Porém, posto que só Cristo pode recapitular todas as coisas e colocar tudo em seu verdadeiro lugar, o hesicasmo aparece como fundamentalmente crístico, como uma ascese cujo fim é a tomada de consciência atuante da Igreja, Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo e Casa do Pai... 

a) - É necessário, em primeiro lugar, recordar algumas aproximações teológicas.

Quando, no Ocidente, pensamos na noção de natureza, o fazemos através de uma sensibilidade filosófica modelada pelo tomismo tardio, logo, pelo dualismo cartesiano, finalmente, pelas ciências contemporâneas que reabilitam - contra as ciências humanas - esse "paradigma perdido" a partir dos dados da biologia, da ecologia e da etologia. Assim, cada vez, temos a impressão de que a graça vem juntar-se à natureza para contrariá-la ou aperfeiçoá-la... No Oriente cristão, me parece, a graça é sentida como presente em tudo o que existe. A verdadeira natureza dos seres e das coisas é justamente essa transparência à graça, esse dinamismo de união com as energias divinas. Pois, a graça é incriada, é Deus mesmo que se faz participável voluntariamente, permanecendo, ao mesmo tempo, o Totalmente Outro, o Inacessível.

Seguir a natureza, nesta perspectiva, é abrir-se à graça e unir-se a Deus: o homem não é verdadeiramente homem senão em Deus, não se pode falar do homem em seu próprio nível e, como dizia Berdiaev, empregando símbolos apocalípticos, não há, em geral, outra eleição que a "divino-humanidade" ou a "bestial-humanidade". O mundo caído, ainda que siga sendo criação de Deus, conhece uma modalidade noturna, ou, se se quer, demasiado clara, luciferina, no sentido do "palácio de cristal" de Dostoievsky. Certamente é mantido no ser pela Sabedoria divina, e a reflexão científica mais recente mostra até que ponto a ordem cósmica se recompõe sem cessar sobre a desordem, sobre o caos. Não obstante, esse mundo de opacidade, de crueldade e de morte, é parcialmente contra-natura: a verdadeira natureza, a descobrimos no corpo "pneumatizado" do Ressuscitado, do qual participamos na Eucaristia...

O homem foi criado à imagem de Deus, chamado a se transformar, na graça, imagem e semelhança, no sentido de uma participação. A imagem designa, em primeiro lugar, o homem enquanto vocacionado a uma existência pessoal em comunhão, a maneira da Uni-trindade e por transparência das energias trinitárias. Porém, designa também essa natureza profunda, inseparável do cosmo, não fruto, senão motor secreto do devir cósmico, e esta natureza é a aspiração ao infinito, a esperança da deificação, a imensa celebração da que a Índia diz com profundidade que dorme na pedra, sonha na planta, desperta no animal, faz-se, ou, melhor dizendo, pode se fazer consciente no homem. Todo o problema do homem radica em expressar justamente esse movimento para o infinito, unir o dinamismo interior do Sopro à revelação do Logos, de outro modo, esse impulso suscita as "paixões" e as idolatrias.

Se se tem presente o significado da noção de natureza, compreende-se que o ser humano, em sua totalidade, e até em sua estrutura e ritmos corporais, está constituído para chegar a ser templo do Espírito (a expressão é paulina, como se sabe). Temos feito do cristianismo um assunto da alma, um assunto psicológico (e finalmente, uma ideologia...). Porém, na Tradição da Igreja indivisa se encontra a idéia muito forte de que o homem é criado para estar unido a Deus em todo o seu ser, espírito, alma e corpo; não se considerando aqui o espírito como uma faculdade particular, mas como o centro donde todas as faculdades se unem, donde o homem, todo inteiro, se unifica e se supera. Em suma, a inscrição em toda a natureza do homem, de sua vocação em pessoa. Um ocidental, marcado por uma espécie de platonismo inconsciente, tem tendência a aproximar o Espírito ao espírito, depreciando o corpo. Na realidade, o Deus vivente transcende também radicalmente, tanto o inteligível como o sensível, e quando se dá, transfigura tanto um como outro. A antropologia do hesicasmo é bíblica, isto é, unitária. Acentua os dois ritmos fundamentais de nossa existência psicossomática, o da respiração e o do coração. O ritmo respiratório é o único que podemos utilizar voluntariamente, não para dominá-lo senão para oferecê-lo; ele determina nossa temporalidade vivida, a acelera ou a acalma, fecha-se sobre si mesma ou a abre sobre a Presença. O ritmo do coração ordena o espaço-tempo ao redor de um centro do que todas as tradições espirituais sabem que é abismal, que pode abrir-se sobre a transcendência; é a "caverna do coração" das tradições arcaicas e da Índia... Esses dois ritmos nos tem sido dados pelo Criador para permitir à vida divina apoderar-se da profundeza de nosso ser e envolvê-lo, encher de luz toda nossa existência. Poderia-se quase dizer, não somente nossa existência corporal mas, a partir de nossa existência corporal, pois é no Corpo de Cristo que somos enxertados pelo batismo; é pelo sangue (con-sangüíneos) e pelo corpo (con-corporais) que somos unidos a Cristo: certamente, o Corpo de Cristo designa sua humanidade inteira, porém a língua não se equivoca, é o corpo o que constitui a raiz e a expressão ultima da encarnação. É necessário tomar a sério a exortação: "Não sabeis que vosso corpo é o templo do Espírito Santo que habita em vós? Glorificai a Deus em vosso corpo" (1Cor 6,19-20).

Uma certa poesia nos guia aqui, não para o imaginário, senão para a profundidade, para o simbolismo verdadeiro que se inscreve na natureza das coisas que o Logos ordena e que o Pneuma vivifica.

«O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou em suas narinas um sopro de vida e o homem se converteu em um ser vivente» (Gn 2,7).

Assim se precisa uma correspondência, uma analogia-participação entre o Espírito, enquanto sopro vivificante de Deus, e a respiração enquanto sopro vital do homem. O homem é chamado a mesclar seu sopro ao Sopro divino, a "respirar o Espírto Santo", como escreveu Gregório o Sinaíta. É o que ele alcança se consegue "aderir" à sua respiração o Nome de Jesus, pois o Espírito, tanto em Deus como no homem, é o "anunciador do Verbo".Existe igualmente uma analogia semelhante entre o coração, como centr de integração do homem, e Cristo, "sol de justiça", coração da Igreja e, por seu intermédio, do Universo, posto que a Igreja não é outra coisa que o Universo em vias de transfiguração ao redor de seu coração. Este tema de Cristo-coração, coração da Igreja e de cada um de seus membros, é fundamental para um espiritual e liturgista leigo do final da Idade Media, Nicolás Cabasillas, que escrevia para os leigos e dava à tradição hesicasta uma tonalidade diretamente sacramental.

Com efeito, o tema do coração está ligado ao do sangue. Quando o homem arcaico e, por outro lado, o homem bíblico, medita sobre o sangue, o vê líquido como a água mas, vermelho e quente como o fogo. O sangue é, de algum modo, a água "pneumatizada", portadora do mistério da vida e que só pertence a Deus. As águas simbolizam a vibração original do criado sob o sopro que suscita a vida. Na origem, o Espírito repousa sobre as águas, as incuba, torna-as dóceis às exortações do verbo. E, certamente, em nós e ao redor de nós, o pecado endurece o ser criado, o faz insensível ao Espírito. Só o sangue que brota do lado, do coração do crucificado pode sacramentar de novo a terra. Só o sangue eucarístico pode ascender novamente o fogo do Espírito em nosso sangue, em nosso coração, desde que a existência em nós perca sua dureza, que o coração de pedra se dissolva nas águas novamente originais, matriciais, do batismo e das lágrimas.

Através destes símbolos que se correspondem, se pode apreciar como se entrelaçam o sopro humano e o sopro divino, a graça batismal, o sangue e o coração. Tudo isto conduz à idéia de uma inteligência que não é somente cerebral, inteligência da cabeça e da racionalidade caída - que opõe ou confunde - e também à idéia de um "sentir", de uma sensação que não é só do coração orgânico ou das entranhas. Por conseguinte, a idéia de uma inteligência do coração espiritual (que não coincide totalmente com o coração físico, mas se encontra um pouco mais além) e de uma sensação do coração espiritual. Como se o coração tivesse se unido, metamorfoseado no crisol da graça, a cabeça e as entranhas, por um conhecimento de fé e de amor, por uma "sensação de Deus" donde o homem íntegro se sobrepassa, se equilibra e se abrasa.

A Bíblia fala sem cessar desse "coração-espírito", desse coração inteligente. O Evangelho diz: "Amarás a Deus com todo o teu coração"; numa redação mais tardia, adaptada à mentalidade helênica, teve tornar mais preciso: "com todo o todo o teu coração e com toda a tua inteligência". Porém, biblicamente falando, "com todo o teu coração" é suficiente pois, dizer "com todo teu coração" é dizer "com toda a inteligência".

O fundamento destas analogias é a criação do homem à imagem de Deus, o que explica que estejam presentes, ao menos de forma parcial, na maioria das tradições espirituais da humanidade. Porém, a Criação não é realmente restaurada, ou melhor, realmente instaurada, senão em Cristo, e é por isto que todas estas analogias encontram nEle sua origem e seu cumprimento. É Ele quem fez da humanidade, o Tempo do Espírito, seu sopro é o "principio de vida"; sua carne e seu sangue, assumindo no pão e no vinho todo o Cosmos e toda a História Humana, são o único alimento de eternidade.

b) A Oração de Jesus, por outro lado, está ligada ao mistério do nome

O tema do nome se re-encontra por todas as partes na história das religiões, como na celebração poética ou ritual, das amizades ou dos amores humanos. O nome tem sido sempre sentido como a expressão da Presença. Nas religiões arcaicas, das que a magia está muitas vezes próxima, conhecer o nome de Deus é dominar seu poder (porém, Deus não é mais que a aparência de uma divindade impessoal). Na Bíblia a mudança é surpreendente: não se trata de dominar o poder de Deus, o Deus vivente toma uma distancia fulminante, até mesmo, inacessível. A invocação do Nome se faz excepcional e terrorífica. O tetragrama era pronunciado só uma vez por ano, no dia de Yom Kippour, quando o grande sacerdote entrava no "santo dos santos". E, inclusive, esta nomeação se perdeu, foi (voluntariamente?) esquecida. Diz-se ADONAI, o Senhor; ou Elohim, o plural que designa o "salto fora de si" do inacessível. Nas religiões da transcendência pura, Judaísmo e Islamismo, não se pretende conhecer o Nome; sabe-se somente que Deus estabeleceu soberanamente certos tipos de relações com o homem e que, dada uma delas, pode ser evocado por um nome relativo por definição (não há então o Nome, senão os nomes: no Islã somam 99).

Jesus nos revela o Nome próprio de Deus e é um Nome expropriado. Deus sai de sua transcendência inacessível e se revela a nós sobre a Cruz. É nesta "kenosis" inimaginável, nesta expropriação total, que nos revela seu próprio nome. Jesus, nome não muito comum no Antigo Israel, significa "Deus Salva", "Deus Liberta". Porém, é só depois do Getsêmani e do Gólgota, depois da descida de Cristo à morte e ao inferno que sabemos que somos salvos e libertos.

O paradoxo do Inacessível e do Crucificado, esta grande antinomia, nos permite balbuciar, muito além de todo sentimentalismo, a equação de João: "Deus é amor". Nós não invocamos o Nome como os povos antigos que queriam dominar um poder: oferecemos a uma presença infinitamente participável, porém simultaneamente inacessível .

Já não invocamos o Nome no temor e no tremor, como o fazem o Judaísmo e o Islam, para os quais trata-se sobre tudo de um desses nomes que constituem algo assim como o "reverso" misterioso do Transcendente. Deus para nós, voltou ao coração de sua Criação pelo Sim de uma mulher e, consumindo o fogo, vem a nós, "doce e humilde de coração" na presença de Jesus, no sopro ligeiro do Espírito, no balbuciar infantil, tão familiar e confiável: "Abba" - Pai; no Pão e no Vinho compartilhados aa Eucaristia.

É por isso que, contrariamente ao que se pensa, muitas vezes, o Nome próprio de Deus, o Nome expropriado do Amor, não me parece que se limite somente à invocação de Jesus. Ele se desdobra na fórmula íntegra: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus", tratando-se de uma fórmula trinitária.

A "Oração de Jesus", tal como se estereotipou nos séculos XIII e XIV, "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim", lembra o chamado do publicano e do cego do Evangelho. Porém, trata-se de uma invocação trinitária. Invocamos a Jesus, o chamamos Cristo e Senhor, por conseguinte, confessamos sua divindade. Entretanto, "ninguém pode dizer que Jesus é Senhor senão no Espírito Santo" (I Cor 12,3). Dizer que Ele é Cristo, é recordar que o Espírito repousa sobre Ele, n'Ele, pois o Espírito é, desde a eternidade, a "unção do Filho", como assinalava São Gregório de Nissa. Invoquemos então, no Espírito, e designemos ao Espírito mesmo designado a unção que faz de Jesus o Cristo. Finalmente, digamos d'Este que é "Filho de Deus". E Deus, nesta fórmula, como em todo o cristianismo antigo, é o Pai, "Fonte" da divindade e "princípio" do Filho e do Espírito. Dizer "Jesus Cristo Filho de Deus", é entrar no mistério da "patri-filiação", é nomear o Pai.

A "Oração de Jesus"- e este é o ultimo elemento de seu contexto, do que me parece essencial falar - se situa numa perspectiva sacramental. Tem por finalidade uma tomada de consciência da graça batismal; é um reencontro pessoal com Cristo que é, ao mesmo tempo, uma "Vida em Cristo, uma "respiração do Espírito" (posto que o corpo sacramental de Cristo é um Corpo "pneumático" , um lugar pentecostal), uma atualização da energia trinitária que, para um cristão, não é jamais impessoal, mas que se realiza no Espírito, por Cristo ao Pai.

O Batismo, e por conseguinte, a Crisma, que no Oriente cristão é inseparável, acentua o aspecto carismático; o batismo é a grande iniciação cristã, submersão nas águas da morte, descida ao inferno com Cristo e subida com Ele e n'Ele; ressurreição em Cristo, possibilidade de metamorfosear a angústia da morte em júbilo no Espírito. De modo que, o batizado leva dali em diante em seu inconsciente, não só os traços de seu destino individual ou coletivo, mas o próprio Deus (o que, a sua maneira, descobrem os "psicanalistas da existência").

Dali em diante, uma certa exterioridade ou impessoalidade de Deus é superada, exterioridade das religiões da transcendência fechada, onde a fé permanece sendo de ordem ética; impessoalidade dos orientes distantes, onde a imersão no divino dissolve o homem.

Mediante o Batismo, o Deus Vivente, o Inacessível, se torna plenamente participável na "profundidade" do coração.

São João Crisóstomo afirma que um adulto, recebendo o Batismo, percebe fugazmente uma real iluminação; porém, que esta se oculta em seguida no inconsciente. É necessário, então trabalhar, e este é todo o sentido da ascese, para tornar-nos conscientes desta Presença que ocupa o fundo de nosso ser. Além disso, existe a santidade em nossa própria existência corporal, enxertada pelo batismo no Corpo do "Único Santo"; existe a santidade em nosso corpo "com-corporal" ao seu, em nosso sangue penetrado pela incandescência eucarística. É nossa alma ou mais precisamente, nossa consciência a que se adultera e se prostitui ; é ela que precisa voltar a estar atenta ao mistério presente no "coração".

A "Oração de Jesus" tem por finalidade "circunscrever o incorporal no corporal", reconstruir a unidade estática do "coração consciente". Tomar consciência da graça do Batismo não se separa, por conseguinte, da tomada de consciência da plenitude eucarística. Viver em Cristo é tornar-se um homem eucarístico, é despertar-se para a grande alegria da Eucaristia que é também uma alegria pentecostal, uma vez cada vez que, cada vez que celebramos a Eucaristia entramos num Pentecostes que não terminará jamais, que antecipa a Parusia, e que sobrevirá com toda sua força no momento da Parusia: "Vimos a verdadeira Luz, recebemos o Espírito celeste", cantam os que comungaram. A finalidade da "Oração de Jesus" é nos ajudar a estabilizar, a elucidar, a interiorizar esta visão da verdadeira Luz, esta recepção do Espírito. A invocação do Nome de Jesus deve chegar a ser uma "epíclesis" cada vez mais permanente.

O "coração consciente" é, deste modo, um coração eclesial. É, por sua vez, a unificação do homem e a tomada de consciência da consubstancialidade, em Cristo, de todos os homens.

Por isso, os carismas que recebem, as vezes, os espirituais - de cura, de profecia, de clarividência, de discernimento dos espíritos, de paternidade espiritual - são ordenados para a "edificação" da Igreja. Ainda que permaneça só e anônimo até o fim de sua vida, o espiritual, só pela sua simples presença, é uma fonte de bênçãos para a Igreja, para a humanidade e para o Universo. Tudo é envolvido em sua oração. É o sal da terra e a luz do mundo, ele que, com o apóstolo, não busca mais que ser a escória deste mundo.

A esta tomada de consciência da graça sacramental se une, de modo inseparável, uma leitura adoradora e, como sacramental ela também, da Palavra de Deus. É o que o monaquismo ocidental denomina a "Lectio Divina" - uma incorporação quase eucarística do sentido espiritual. Uma leitura semelhante permite, logo, levar em si uma frase ou um palavra, como um gérmen de vida, como um perfume que enobrece a alma durante horas.

Deixa-se levar pela leitura dos Salmos, porém se repentinamente uma frase, uma expressão, toca o coração, é necessário guardar em si, preciosamente, este toque de transcendência: "Teu amor me feriu, marcho cantado-te", dizia São João Clímaco.

Entre as histórias do deserto, se encontra aquela do homem que encontrou um abba (pai espiritual) e lhe perguntou como se devia orar. "É necessário recitar os salmos", respondeu o monge. Como não sabia nenhum, o monge lhe ensinou o primeiro versículo do Primeiro Salmo: "Feliz o homem que não marcha segundo o conselho dos ímpios". E acrescentou: "Vê, medita estas palavras, volte logo te ensinarei a continuação". O homem partiu e o monge não o voltou a ver. Durante muitos anos sua meditação se alimentou daquelas palavras e por causa delas se converteu em um santo...

A Bíblia e a Filocalia são inseparáveis. O autor dos Relatos de um Peregrino Russo, conta que só levava estes dois livros em seu alforje. "O Evangelho é como a oração de Jesus", escreveu, "pois, o Nome divino encerra em si todas as verdades evangélicas". Quando comecei a compreender melhor a Bíblia, graças a Filocalia, encontrei cada vez menos passagens obscuras. Os Padres têm razão em dizer que a Filocalia é a chave que descobre os mistérios encerrados na Escritura. É a hermenêutica da oração a que mais temos necessidade nos dias de hoje "Comecei a compreender o sentido oculto da Palavra de Deus", acrescenta o Peregrino, "descobri o que significam expressões como: "o homem interior do coração", "a oração verdadeira", "a adoração em espírito", "o Reino em nosso interior" e "a intercessão do Espírito". Compreendi o sentido destas palavras: "Vós estais em mim", "estar revestidos de Cristo" e muitas outras.

Compreende-se que o Oriente cristão chamou "graphai", escrituras, indistintamente, à Bíblia, aos seus comentários litúrgicos e aos seus comentários místicos; e que também certos espirituais da Tradição pudessem afirmar que a destruição material da Bíblia não teria para eles nenhuma importância, não só porque já sabiam de memória, mas porque já havia penetrado em seu coração. No limite, o coração virgem do santo "iletrado" (agrammatos) se converte em página branca na qual Deus escreve diretamente, com caracteres de fogo o seu Verbo.

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