O tema do nome se re-encontra por todas as partes na história das religiões, como na celebração poética ou ritual, das amizades ou dos amores humanos. O nome tem sido sempre sentido como a expressão da Presença. Nas religiões arcaicas, das que a magia está muitas vezes próxima, conhecer o nome de Deus é dominar seu poder (porém, Deus não é mais que a aparência de uma divindade impessoal). Na Bíblia a mudança é surpreendente: não se trata de dominar o poder de Deus, o Deus vivente toma uma distancia fulminante, até mesmo, inacessível. A invocação do Nome se faz excepcional e terrorífica. O tetragrama era pronunciado só uma vez por ano, no dia de Yom Kippour, quando o grande sacerdote entrava no "santo dos santos". E, inclusive, esta nomeação se perdeu, foi (voluntariamente?) esquecida. Diz-se ADONAI, o Senhor; ou Elohim, o plural que designa o "salto fora de si" do inacessível. Nas religiões da transcendência pura, Judaísmo e Islamismo, não se pretende conhecer o Nome; sabe-se somente que Deus estabeleceu soberanamente certos tipos de relações com o homem e que, dada uma delas, pode ser evocado por um nome relativo por definição (não há então o Nome, senão os nomes: no Islã somam 99).
Jesus nos revela o Nome próprio de Deus e é um Nome expropriado. Deus sai de sua transcendência inacessível e se revela a nós sobre a Cruz. É nesta "kenosis" inimaginável, nesta expropriação total, que nos revela seu próprio nome. Jesus, nome não muito comum no Antigo Israel, significa "Deus Salva", "Deus Liberta". Porém, é só depois do Getsêmani e do Gólgota, depois da descida de Cristo à morte e ao inferno que sabemos que somos salvos e libertos.
O paradoxo do Inacessível e do Crucificado, esta grande antinomia, nos permite balbuciar, muito além de todo sentimentalismo, a equação de João: "Deus é amor". Nós não invocamos o Nome como os povos antigos que queriam dominar um poder: oferecemos a uma presença infinitamente participável, porém simultaneamente inacessível .
Já não invocamos o Nome no temor e no tremor, como o fazem o Judaísmo e o Islam, para os quais trata-se sobre tudo de um desses nomes que constituem algo assim como o "reverso" misterioso do Transcendente. Deus para nós, voltou ao coração de sua Criação pelo Sim de uma mulher e, consumindo o fogo, vem a nós, "doce e humilde de coração" na presença de Jesus, no sopro ligeiro do Espírito, no balbuciar infantil, tão familiar e confiável: "Abba" - Pai; no Pão e no Vinho compartilhados aa Eucaristia.
É por isso que, contrariamente ao que se pensa, muitas vezes, o Nome próprio de Deus, o Nome expropriado do Amor, não me parece que se limite somente à invocação de Jesus. Ele se desdobra na fórmula íntegra: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus", tratando-se de uma fórmula trinitária.
A "Oração de Jesus", tal como se estereotipou nos séculos XIII e XIV, "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim", lembra o chamado do publicano e do cego do Evangelho. Porém, trata-se de uma invocação trinitária. Invocamos a Jesus, o chamamos Cristo e Senhor, por conseguinte, confessamos sua divindade. Entretanto, "ninguém pode dizer que Jesus é Senhor senão no Espírito Santo" (I Cor 12,3). Dizer que Ele é Cristo, é recordar que o Espírito repousa sobre Ele, n'Ele, pois o Espírito é, desde a eternidade, a "unção do Filho", como assinalava São Gregório de Nissa. Invoquemos então, no Espírito, e designemos ao Espírito mesmo designado a unção que faz de Jesus o Cristo. Finalmente, digamos d'Este que é "Filho de Deus". E Deus, nesta fórmula, como em todo o cristianismo antigo, é o Pai, "Fonte" da divindade e "princípio" do Filho e do Espírito. Dizer "Jesus Cristo Filho de Deus", é entrar no mistério da "patri-filiação", é nomear o Pai.
A "Oração de Jesus"- e este é o ultimo elemento de seu contexto, do que me parece essencial falar - se situa numa perspectiva sacramental. Tem por finalidade uma tomada de consciência da graça batismal; é um reencontro pessoal com Cristo que é, ao mesmo tempo, uma "Vida em Cristo, uma "respiração do Espírito" (posto que o corpo sacramental de Cristo é um Corpo "pneumático" , um lugar pentecostal), uma atualização da energia trinitária que, para um cristão, não é jamais impessoal, mas que se realiza no Espírito, por Cristo ao Pai.
O Batismo, e por conseguinte, a Crisma, que no Oriente cristão é inseparável, acentua o aspecto carismático; o batismo é a grande iniciação cristã, submersão nas águas da morte, descida ao inferno com Cristo e subida com Ele e n'Ele; ressurreição em Cristo, possibilidade de metamorfosear a angústia da morte em júbilo no Espírito. De modo que, o batizado leva dali em diante em seu inconsciente, não só os traços de seu destino individual ou coletivo, mas o próprio Deus (o que, a sua maneira, descobrem os "psicanalistas da existência").
Dali em diante, uma certa exterioridade ou impessoalidade de Deus é superada, exterioridade das religiões da transcendência fechada, onde a fé permanece sendo de ordem ética; impessoalidade dos orientes distantes, onde a imersão no divino dissolve o homem.
Mediante o Batismo, o Deus Vivente, o Inacessível, se torna plenamente participável na "profundidade" do coração.
São João Crisóstomo afirma que um adulto, recebendo o Batismo, percebe fugazmente uma real iluminação; porém, que esta se oculta em seguida no inconsciente. É necessário, então trabalhar, e este é todo o sentido da ascese, para tornar-nos conscientes desta Presença que ocupa o fundo de nosso ser. Além disso, existe a santidade em nossa própria existência corporal, enxertada pelo batismo no Corpo do "Único Santo"; existe a santidade em nosso corpo "com-corporal" ao seu, em nosso sangue penetrado pela incandescência eucarística. É nossa alma ou mais precisamente, nossa consciência a que se adultera e se prostitui ; é ela que precisa voltar a estar atenta ao mistério presente no "coração".
A "Oração de Jesus" tem por finalidade "circunscrever o incorporal no corporal", reconstruir a unidade estática do "coração consciente". Tomar consciência da graça do Batismo não se separa, por conseguinte, da tomada de consciência da plenitude eucarística. Viver em Cristo é tornar-se um homem eucarístico, é despertar-se para a grande alegria da Eucaristia que é também uma alegria pentecostal, uma vez cada vez que, cada vez que celebramos a Eucaristia entramos num Pentecostes que não terminará jamais, que antecipa a Parusia, e que sobrevirá com toda sua força no momento da Parusia: "Vimos a verdadeira Luz, recebemos o Espírito celeste", cantam os que comungaram. A finalidade da "Oração de Jesus" é nos ajudar a estabilizar, a elucidar, a interiorizar esta visão da verdadeira Luz, esta recepção do Espírito. A invocação do Nome de Jesus deve chegar a ser uma "epíclesis" cada vez mais permanente.
O "coração consciente" é, deste modo, um coração eclesial. É, por sua vez, a unificação do homem e a tomada de consciência da consubstancialidade, em Cristo, de todos os homens.
Por isso, os carismas que recebem, as vezes, os espirituais - de cura, de profecia, de clarividência, de discernimento dos espíritos, de paternidade espiritual - são ordenados para a "edificação" da Igreja. Ainda que permaneça só e anônimo até o fim de sua vida, o espiritual, só pela sua simples presença, é uma fonte de bênçãos para a Igreja, para a humanidade e para o Universo. Tudo é envolvido em sua oração. É o sal da terra e a luz do mundo, ele que, com o apóstolo, não busca mais que ser a escória deste mundo.
A esta tomada de consciência da graça sacramental se une, de modo inseparável, uma leitura adoradora e, como sacramental ela também, da Palavra de Deus. É o que o monaquismo ocidental denomina a "Lectio Divina" - uma incorporação quase eucarística do sentido espiritual. Uma leitura semelhante permite, logo, levar em si uma frase ou um palavra, como um gérmen de vida, como um perfume que enobrece a alma durante horas.
Deixa-se levar pela leitura dos Salmos, porém se repentinamente uma frase, uma expressão, toca o coração, é necessário guardar em si, preciosamente, este toque de transcendência: "Teu amor me feriu, marcho cantado-te", dizia São João Clímaco.
Entre as histórias do deserto, se encontra aquela do homem que encontrou um abba (pai espiritual) e lhe perguntou como se devia orar. "É necessário recitar os salmos", respondeu o monge. Como não sabia nenhum, o monge lhe ensinou o primeiro versículo do Primeiro Salmo: "Feliz o homem que não marcha segundo o conselho dos ímpios". E acrescentou: "Vê, medita estas palavras, volte logo te ensinarei a continuação". O homem partiu e o monge não o voltou a ver. Durante muitos anos sua meditação se alimentou daquelas palavras e por causa delas se converteu em um santo...
A Bíblia e a Filocalia são inseparáveis. O autor dos Relatos de um Peregrino Russo, conta que só levava estes dois livros em seu alforje. "O Evangelho é como a oração de Jesus", escreveu, "pois, o Nome divino encerra em si todas as verdades evangélicas". Quando comecei a compreender melhor a Bíblia, graças a Filocalia, encontrei cada vez menos passagens obscuras. Os Padres têm razão em dizer que a Filocalia é a chave que descobre os mistérios encerrados na Escritura. É a hermenêutica da oração a que mais temos necessidade nos dias de hoje "Comecei a compreender o sentido oculto da Palavra de Deus", acrescenta o Peregrino, "descobri o que significam expressões como: "o homem interior do coração", "a oração verdadeira", "a adoração em espírito", "o Reino em nosso interior" e "a intercessão do Espírito". Compreendi o sentido destas palavras: "Vós estais em mim", "estar revestidos de Cristo" e muitas outras.
Compreende-se que o Oriente cristão chamou "graphai", escrituras, indistintamente, à Bíblia, aos seus comentários litúrgicos e aos seus comentários místicos; e que também certos espirituais da Tradição pudessem afirmar que a destruição material da Bíblia não teria para eles nenhuma importância, não só porque já sabiam de memória, mas porque já havia penetrado em seu coração. No limite, o coração virgem do santo "iletrado" (agrammatos) se converte em página branca na qual Deus escreve diretamente, com caracteres de fogo o seu Verbo.
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